17 de set. de 2010

Ariovaldo

ARIOVALDO, neguinho travesso, arisco, 11 anos, bom de bola, magro de fome. Os pais de Ariovaldo não tiveram estudo, coisa que com muito custo o menino teve numa escola municipal. Mas o que Ariovaldo queria na vida não era ser “dotô”, era ser mesmo jogador. Queria ser atacante do Botafogo que nem o Mané Garrincha, de tanto que lhe falava o seu vô Bernardino.
                            Ari, pai de Ariovaldo, não apostava no futebol que o moleque jogava na lama, nas ruas estreitas da favela, fazendo firulas e fazendo fila com os dribles desconcertantes em seus amiguinhos. Ari sonhava com Ariovaldo numa faculdade. A mãe de Ariovaldo, ainda ia mais longe, queria o garoto como engenheiro, para que ele pudesse construir para a família uma casa de verdade. A família do garoto não acreditava em sua habilidade como atacante, de correr e driblar. Mas o tempo passou, Ariovaldo cresceu e sua família não investiu em seu talento como jogador de futebol. Porém, na favela houve quem acreditasse no seu talento de correr e driblar: o tráfico.
                            Ariovaldo saiu da escola no momento em que descobriu um jeito de ganhar muito dinheiro num curto prazo de tempo, numa atividade que quase não exigia seu esforço. Sua mãe, apesar do conforto que Ariovaldo estava dando para sua família com o dinheiro sujo do tráfico, morreu de desgosto por ver o filho arriscando a vida e tirando outras.
                            A sua parte consistia em ser o atravessador para os traficas do asfalto. Ele levava a droga e vendia para os playboys, que revendiam mais caro para outros playboys que não tinham peito de subir o morro atrás do barato. Ariovaldo não era mais Ariovaldo, pela sua estatura e sua magreza de dar dó, era conhecido como Caveirinha.
                            O traficante Caveirinha já não driblava no futebol como fazia Ariovaldo, usava suas firulas e sua velocidade para escapar dos cana. Não dava mais passes para o gol, passava de 5 e de 10.
                            Quando o pipoco comia solto, corria como costumava correr para o ataque, chegava a ver o gol na sua frente para o pontapé que iria desencadear a alegria de milhões de torcedores. Pedalava para se esconder nas sombras quando apontava na esquina a veraneio vascaína. Pulava muros e telhados como nos treinos mais rígidos dos campeonatos. Caveirinha era respeitado tanto na defesa da boca quanto no ataque contra aqueles que invadiam a sua área, ele não tinha pena de entrar de carrinho e cometer faltas perigosíssimas. Tinha raça! Se garantia na porrada, quando pintava treta nos bailes funk da vida e sujava os punhos com o sangue dos irmãos treteiros. Riscava no ar seu punhal, presente de algum Exu do terreiro de mãe Pretinha, e chamava pra briga na capoeira com a ginga de um goleador.
                            Caveirinha foi ganhando nome e posição. Já estava visando um negócio de craque. Mas sua frustração veio quando viu que crack no Rio, não dava IBOPE. Tinha que expandir fronteiras, ganhar a confiança do testa-de-ferro da boca e dos gringos para negociar o crack pro exterior. Aí, sim, quando voltasse para o Brasil depois de se internacionalizar, teria mais crédito e entraria para a seleção do tráfico internacional.
                            Caveirinha abandonou a família e como já estava marcado, foi morar fora do estado. Em São Paulo mexeu com seqüestro, extorsão, armas pesadas, assassinatos e já era muito requisitado na lista do “Procura-se”.
                            Certo dia, o vô Bernardino foi parar num Pronto-Socorro lá no Rio de Janeiro. Estava muito mal, pelo que relatou um de seus primos. O seu avô era o único que em toda sua vida queria vê-lo defendendo a Estrela Solitária com toda a maestria e o talento com que havia nascido. Seu avô sonhava em vê-lo jogar e ser campeão pelo Botafogo!
                            Caveirinha vestiu a camisa do seu clube do coração e largou tudo para encontrar com o seu avô no Hospital no Rio de Janeiro. Mas não esperava ele, que o destino fosse lhe aprontar uma peça. Algum dedo-de-seta avisou pros cana que ele estava indo para o Rio. Foi só chegar na rodoviária que a Polícia, numa ação de contra-ataque, o pegou com a defesa vendida e marcou um golaço: prendeu Caveirinha, que sem reação, apático e abatido perdeu a partida. Enquanto dava o seu depoimento na delegacia, seu avô Bernardino morria sem nem sequer ter sido atendido por causa dos poucos médicos que haviam de plantão. Culpa da greve. Culpa do estado.
                            Condenado por muitos e muitos anos de prisão por tráfico de drogas, seqüestro, assassinato, assalto a mão armada, extorsão, formação de quadrilha, entre muitos outros títulos, não restou opção a Caveirinha: formou com outros detentos um time de futebol na penitenciária de segurança máxima.
                            No chão, com piso de cimento, duro e áspero, diferente da maciez da lama de sua rua em que jogava com seus amigos, ele fazia a festa. Levava a torcida da ala 07 ao delírio. Não tinha tempo ruim, com chuva ou com sol, o atacante fazia gol de falta, de bicicleta, de letra, driblava um, dois, três e levava o goleiro adversário para buscar a bola no fundo da rede.
Na final do primeiro campeonato da penitenciária estadual, todos pararam o que estavam fazendo para assistir ao jogo. Dos detentos até o diretor do presídio. Ala 07 versus ala 12. Foi uma goleada espetacular de 5 a 1 para o time da ala 07, onde o seu craque principal marcou 3 dos 5 gols.
Terminada a partida, ao erguer a humilde taça, feita pelos detentos que trabalhavam na oficina, sentiu descer as lágrimas dos olhos. A torcida agradecida gritava pelo seu nome:
__ Ariovaldo! Ariovaldo! Ariovaldo!...
Do livro de contos Angustiolândia, de Romulo Narducci.         

15 de set. de 2010

A Santa


A primeira coisa que a Santa fez foi encolher e esticar os dedos do pé. Séculos nesta mesma posição, era bom sentir os dedos dormentes formigarem. Daí ela piscou.
Piscou duas vezes e deixou a luz que penetrava na Catedral desenhar os contornos de toda aquela grandiosidade, e da multidão em sua pequenez individual – e em sua unidade semovente, como a barriga de um cachorro.
A igreja estava cheia, dia de Ramos, pessoas agitavam suas folhas de palma e entoavam hinos de louvor para lembrar a entrada do Senhor em Jerusalém.
- Mamãe, a Santa piscou.
- Shhhh!
- Sério, mãe. A Santa piscou. Duas vezes!
- Calabocamenino! Não te trago mais à igreja assim, e nem compro milho para você lá fora.
- Mas mãe...
_ Shhhh! – silenciou o petiz com um beliscão.
“Mas que ela piscou, piscou” – e ficou de olho na Santa.
Lentamente, a vida foi contaminando a pedra. O que era frialdade e estática, começava a se tornar vida e beleza. Cada centímetro de manto pétreo se amassava em tecido, e as mãos adquiriam a textura de pêssegos maduros e peitos pubescentes.
A Santa piscou mais uma vez, e sentiu a fraca brisa que corria pela nave da Catedral (neoclássica, fechada e cheia de ventiladores) em sua pele. Umedeceu ligeiramente os lábios, e olhou diretamente para o menino assustado. Entoou um “oi” mudo com os lábios, e sorriu.
- A SANTA TÁ VIVA!
O padre parou imediatamente de falar, e o silêncio tomou conta da nave, como se todos ali tivessem prendido a respiração naquele exato momento. Menos o menino.
- A Santa tá viva! Ela se mexeu, eu vi! – gritava histérico, apontando para a imagem, agora em cores mais humanas, apesar da pele pálida e cristalina.
Nesse momento, toda a audiência se voltou para a Santa, que sorria, com olhos bondosos.
Imediatamente, o burburinho recomeçou. “Valeimeminhamãedocéu” e “Milagre!” eram ouvidos entre os sussurros. Pessoas se prostravam de joelhos; alguns, mais idosos, choravam ao ver a face da Santa, que sorria bondosamente enquanto dava uma olhada panorâmica pela multidão.
O padre caíra também de joelhos, e entoava palavras desconexas, e deixava que as lagrimas lhe escorressem pelas faces copiosamente.
O barulho aumentava, e mesmo os fiéis mais céticos começavam a cair no chão. Alguém já começava a proclamar um milagre, viúvas uivavam, mocinhas quase arrebentavam seus rosários. De repente, a Santa ergueu seu braço direito, palma da mão pra baixo. O barulho lentamente começou a cessar; ainda se ouvia “Shhh, a Santa vai falar” e alguns “Glórias” ocasionais.
A Santa sorriu novamente, puxou o ar – enquanto todos voltavam novamente à apneia – e soltou o ar, como se testasse a garganta recém-formada em carne. Tentou novamente, engoliu em seco, e parou.
A multidão aflita, o sacerdote se adiantou – já recuperava seu papel de condutor de rebanhos – e verbalizou o desejo de toda aquela gente:
- Diga, minha Santa. Se nós somos dignos de uma revelação, diga agora o que queres a esses fiéis servos de Nosso Senhor.
A Santa então puxou o ar, e disse em um só hausto, em uma voz suave e cristalina, porém com potência suficiente para que todos a ouvissem:

- Eu quero dar.

(continua...)

8 de set. de 2010

Do Homem

Do homem

Deixei passar pela fresta um pouco de luz, mas mesmo assim desliguei toda a minha preocupação com o que pudesse acontecer comigo no exato momento que dei por conta de que me adentrava por um universo feminino, estranho e diferente. Lembro que nessa noite dormia como um anjo, nem se preocupando com a inesperada natureza de um estranho, que até então era. Esta era a sensação que lembrava da primeira vez em que dormi em seu apartamento. Era um misto de medo, insatisfação com o desconhecido, tesão, poder e confesso que conforto também. Tinha sido Carnaval ontem. Estávamos nus e abraçados. Soltos em um lençol que não nos comportava pelo calor. Antes de se declarar presente – o seu perfume – morria entre a cova de suas bochechas e me alardeava, depois durante os dias, por viver pensando em uma mulher que conheci em um dia, em uma rua, em uma praça, lotada vazia de pessoas interessantes, mas antes, ali estava, parecendo me esperar com um Top Abada, dançando um ritimo que deixava o seu corpo mostrar um certo tom de erotismo. Poucos homens hoje em dia se confessam seduzidos ou até mesmo apaixonados. Estive sim, apaixonado por uma transeunte, por uma mulher que eu nem conhecia realmente. Meu coração estava solto em um espaço de tempo e fora, completamente fora de razão. Parecia que a conhecia de séculos e a verdade é que eu me via louco a esperar por ela quase que sempre quando sentia que a perderia. A libido sempre vinha como desculpa e tomava as rédeas do que seria uma pura e simples paixão, nunca a frisei como tal, mas perdia cada vez mais a tal da “intocável razão masculina”. Sentia me vender mais e mais aos seus caprichos de canceriana e sempre perdia a minha autonomia. Ia guardando ela em um fosso, junto com a minha auto estima também. Acho que nenhum homem se apaixona mais. Todos os outros não pensam como eu, mas creio que alguns sim.

Volto de uma praia vazia. Devia ter ido para o sossego da lagoa, mas eu quis apenas ver o movimento da rua ou até mesmo encontra-la, para tomarmos juntos o espumante que comprei para o nosso primeiro reveilon. Guardo uma taça para caso alguém apareça. Ouço fogos, gritos e sons de festejo, mas ainda sim só sou eu, minha garrafa e taça de Champagne. Descalço, de branco, sem abraços ou qualquer tipo de menção honrosa por ter passado por um período de tempo, um ano, um mês sufocado por não conseguir mais dizer volta e fazer voltar. Era apenas mais um ano em que fiquei um pouco mais distraído, mas agora nem tanto, perdi minhas gostosas preocupações. Há muito tempo não pensava só em mim, mas às vezes eu sentia falta de pensar nela, e quase sempre quando isso acontece sinto o abraço de uma forte melancolia que me come longos períodos de lapsos, em que perco fome e sono. Estou tomando anti-depressivos, mas é de vez em quando, quando eu lembro que estou triste... Mas acho que vivo uma vida normal, que infelizmente é agora, não sei, mas todos os outros pensam assim...Menos eu...

O perfume de Viane me completava a sala. Era uma entidade onipresente em minha casa, me tirava a alma e me deixava quase sempre semi-nu Me espreitava ao sair do banho e me lembrava que eu era só no fim do Ano. Não me incomodava mais as suas coisas dispersas e absortas pela sala, desdizendo e destoando com a decoração masculina habitual, não me importava mais os seus vestidos guardados como troféus em meu armário... Era a minha conquista mais austera. A mulher mais bem esculpida e sensualmente feita. Parecia tenaz em meu peito, me sufocando, fazendo-me lembrar que tenho um coração, que tenho alma, saliva, boca, sexo... Apenas voei em meus pensamentos e dexei-me levar pelo falso e enganoso perfume de Viane, que me fendia as portas, escancarava meu peito e me dizia que agora estava só como os outros.

6 de set. de 2010

O catedrático.

Ele me faz ocultar segredos que nem aos pés do oratório devo eu confessar. Mas por inquietude de minh'alma revolveu-me o que se passa nos recônditos da mente e do espírito... e o resguardo, foi desfeito. Devo eu fazer um relato circunstanciado de sua pessoa? Quase isso...Ele era homem distinto e tinha sobriedade no trajar. Lembro-me bem... dos fios de cabelos ruivos, a barba aparada. Uma pele tão alva quanto a cor da camisa. E se quisesse se fazia passar por alemão, mas era apenas um brasileiro descendente. A impressão que eu tinha era que seu andar não escapava a observação das alunas e quando ele parava por alguns segundos, parecia sim pousar para fotos.
Percebi que mantinha o grau da formalidade, por isso o rigor e a polidez o acompanhavam. Empregava termos inusuais, mas não tinha um discurso pretencioso.
Lecionava filosofia. E fora de sala de aula fazia seus comentários sobre o movimento da vida, do ser, da essência do ser...sua linha de estudo estava entrelaçada em Heidegger. Suas discussões também envolviam Nietzsche, Sartre...Não escondia seu encantamento pela literatura alemã apreciava Schiller, Goethe e revelava-se um admirador da poesia de Rainer Rilke, poeta que compartilhou um amor louco pela Salomé, a mesma que Wagner e Nietzsche, amaram.
Em uma dessas conversas, fora de sala de aula, nos pegamos sem reservas a compartilhar nossos gostos por literaturas. E fui eu quem disse:
_Professor, adoro Leminski e Clarice Lispector. Sempre que posso, vou a um sarau de poesias. Sou a amante do vinho, do queijo e da poesia! E ele me sorriu.
Disse-me que tinha um ciclo de estudos com alguns autores de literatura, vaidosamente mencionou sua participação como escritor.
Quando terminei o curso de filosofia, trocamos e-mails e números de telefones. Ele me convidou para o lançamento de seu terceiro livro em parceria com outros autores. Cogitei...Talvez não o encontrasse no tumulto, pois ele ia pousar para as fotos, fazer suas dedicatórias, dar seus autógrafos e entrevistas. Não fui ao seu encontro. A chuva forte me prendeu em casa. Apoiei-me nesse pretexto. Talvez eu me acovardava, talvez eu adiasse o que estava por vir. E logo nos vimos no corredor da faculdade, entre uma sala e outra...a relação professor e aluna se perdeu e deu lugar a uma afinidade.
Chamava-me para ir até a porta da sala, no término de suas aulas, entre uma aula e outra, nos intervalos. Conversávamos sobre assuntos diversos, sempre me encantando com livros de presente. É...eu me envolvia. Nós nos envolvíamos. Até que o primeiro encontro foi sugerido feito convite quando me pegou a mão. E fui eu quem disse, nada acanhada com sorriso nos lábios:
_Professor, por que sempre me convida para lançamentos de livros? E não me convida para tomarmos um vinho?
(Risos) E ele respondeu:
_É verdade. E você, nunca aparece nos lançamentos! Podemos ir ao calçadão assistir ao Encontro dos poetas e logo depois...
_ E logo depois?
(Risos)
_Então, aceita tomar um bom vinho comigo?
Neste momento se lhes tateassem as maçãs do rosto, sentiriam como elas estavam quentes. Suas feições de alemão se misturavam em um rosto ruborizado, ele não soube desviar seu olhar. O que refletiu também em mim porque apesar do meu jeito falante, disfarcei a tal timidez que às vezes me atrapalhava. Sim. Pensei por um instante na insinuação que fiz. Não sei se cheguei a causar um eventual constrangimento. Teria sido somente impressão minha?
Minha ousadia havia despertado mais a vontade de estarmos juntos. Vontade muito maior do que antes e esse encontro, existiu. Esses encontros foram se repetindo...Paixão?!Fetiche de aluna e professor.
Certa vez...
Tocou-me às pontas dos dedos lentamente...É assim que se toca uma mulher como você!Fitando-me com olhos excitados, fiz cair todo vestuário... Duas taças de sorvete de creme derretiam-se na cabeceira da cama, nos inquietávamos. Suas mãos estavam ocupadas. Seu corpo queria ocupar. Corpo nu e o sorvete derramado que penetra à derme. A língua se arrastava nervosamente na nunca e vinha percorrendo desde à ponta da orelha ao contorno dos mamilos até pode chegar à cavidade dos membros que se abriam...
Da preliminar à intimidade... Da carne trêmula à deslocação... Despidos estávamos. Entre uivos e gemidos histéricos repetia-se simultaneamente o ritmo regular da dança dos corpos...Por um momento, seu corpo estremeceu agitado e caiu sobre a cama. Corpo lânguido, espesso, fronte suada...assim veio pousar à cabeça em meu ventre sem dizer uma palavra. Tornou a suceder outras vezes esses instantes... Ato após ato, eu me aninhava em seu peito prometendo esquecer o mundo que continuava lá fora.
Por vezes, nossos encontros se tornaram atrativos. Visitamos às exposições de Debret e restaurantes de pratos requintados da cozinha alemã. Passeávamos de bonde em Santa Tereza. Andávamos de mãos dadas, feito dois namorados pela Chácara do Céu para contemplarmos a melhor vista do Rio de Janeiro. Mas e o vinho que não tomamos? No restaurante, ele assinou um cartão dizendo assim:

Lembrança do dia em que não tomamos vinho.
Ass: R.K.

E o brinde não foi adiado. Na outra ocasião, brindávamos ao sentimento que nos unia e as verdades que não tínhamos. Ele apanhou à rolha do vinho e uma caneta de bolso, gravou na rolha a seguinte mensagem: In vino veritas.
No vinho está a verdade! A embriaguez soltaria a língua e faria as verdades virem? Nem por tanto tempo senti as verdades que julgava descobrir. Ele me dizia ao final de nossos encontros:
_Lembra.
E na primeira vez que ouvi perguntei:
_Lembra de quê?
Ele respondeu:
_ De lembrar. Erinnst.

***
Passado alguns dias, recebi um cartão postal pelos correios que me dizia assim:

Parti apressadamente para Alemanha,
na condição de cumprir o doutorado.
Quis evitar despedidas.
R.K.

Nada soube dele neste período e devia regressar a Universidade. E quando? Eu me angustiava de leve impressão dele...o vento que passou por mim. Tenho cá, minhas dúvidas. Era quase amor. Sei que me foi uma travessura, uma traquinice dessas que a gente faz escondido e com gosto.
Não, não parei de lembrar. Seu telefone não me dava sinal. Aprendi a chorar quieta e de luz apagada, sentir no rosto às lágrimas que rolavam quentes. O cartão postal, eu passei a não ler mais. Todas às vezes que o fazia, me vinha o mal estar. Talvez quem me lê lance suas pequenas desconfianças...
Segui de férias. Espaço de tempo que vigorou pouco, logo retornei. E não demorou muito para poder obter notícias de meu professor. Fui ao departamento saber a respeito dele e foi aí que me contaram.
_ Bom dia! Por favor, me ajude! Precisava falar com o professor de filosofia. Quando ele vem dar aula?
_ A senhorita é aluna?
_Sim.
_Ele foi para Alemanha terminar o doutorado. Viveu no país durante esse período, mas ocorreu uma fatalidade. Ainda não sabemos quem vai substituir na disciplina.
_O que aconteceu? Me diga!? O que houve com o professor? Eu insisto!
_Não podemos dar informações a respeito disso ainda. Por que está tão aflita?
_É que por Deus, ele não é só meu professor é também meu... amigo e...é isso, estou preocupada. A senhora disse que ocorreu uma fatalidade? Por favor, não me esconda!
_ É melhor se sentar, por favor.
_Diga-me o que houve?
_ Ele faleceu. Foi assassinado com dois tiros no peito por um grupo de extrema direita adepto à xenofobia, o preconceito ao estrangeiro. Eles o atacaram na saída de uma livraria.
Tentei me levantar da cadeira foi quando a vista escureceu. Cai desmaiada.
Tive a perda passageira dos sentidos, mas fui socorrida na Universidade. Acordei em um quarto de hospital parecia que eu tinha levado umas pancadas. O corpo me doía todo, eu queimava de febre altíssima. Mamãe veio tomar conta de mim porque eu estava delirante demais por conta da febre. Disse minha mãe que naquela noite, eu saculejava na cama abatida e repetia de maneira confusa umas palavras.
Balbuciava seguidamente quase uns versos assim: "Mil dores físicas do que a dor de um amor perdido".

***
Levei uns dias de recuperação. Quando retornei para casa, mais um cartão postal me aguardava da Alemanha. Eu abri, porém antes, vi no envelope uma mensagem dos correios esclarecendo que houve atrasado de entrega, devido ao período de greve. Abri e ali estava uma mensagem de meu professor, a última que eu receberia e dizia assim:

Não! Não estou escrevendo para justificar. E nem para citar frases de Ovídio (A arte de amar).
Escrevo-lhe com a audácia de um amante que teima em lembrar.Volto essa semana para podermos tomar o nosso vinho. Quero o meu abrigo, aqui faz tanto frio!
Parti. Parte de mim fica em ti. Parte de ti fica em mim.
Lembra. Erinnst.
R.K.

Ele tinha mesmo a razão ao escrever umas palavras. Parte dele ficou em mim... não foi somente a gestação de uns versos ou coisa que valha. Quando fazíamos amor e depois eu chegava em casa, ainda ficava empreguinada dele...minha pele exalava seu cheiro. Mas não é bem isso que eu ia dizer. O que eu ia dizer é que parte dele ficou em mim sim. Quando tomei alta do hospital me veio a revelação e era mais que uma boa nova. Estou grávida. Grávida? Grávida! Ohh... grávida!! O mundo me dizia. Um fruto maturando em meu ventre...Sim.
Eu não deixei de lembrar. Erinnst.

Ps: Início em 28/11/08, término 15/05/09. Ainda sujeito a alterações.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AO AUTOR.

15 de abr. de 2010

A Descoberta do Tempo

A tensão causada pela tese de que não há moto-perpetuo abalaram a cidade de Ur.


O Conselho reuniu-se prontamente para fazer cessar toda e qualquer tentativa de construir uma máquina que almejasse alcançar o famigerado estado. Geômetras e filósofos ganharam vigilância redobrada em suas sessões privadas. Suas reuniões públicas proibidas. Os visitantes tidos como sábios deveriam dirigir-se ao Templo para poder confabular com os sábios locais ou mesmo para circular pela cidade.


Yem Wabii Galmesh, vindo do oriente, profeta em sua cidade natal, vem mais uma vez obter as famosas peças de cerâmica, perfeitas para suas clepsidras, e fazer algumas anotações astronômicas com seu antigo amigo e mestre escriba.


Ur atraía para si toda a riqueza da época. Seus pedreiros eram exímios construtores e as praças e casas luxuosas de dois andares denunciavam um grande futuro para a cidade. Ferreiros buscavam o segredo dos metais e astrônomos e filósofos procuravam os escribas para perpetuar seus conhecimentos.


Sob o sol vermelho do final da tarde Galmesh contemplava a maravilha que se erguia no meio do deserto mas o tempo estava contra ele dessa vez e precisava descansar logo de sua longa viagem.


Ao pisar no gigantesco e caótico mercado procurou o amigo que fazia o melhor fermentado de trigo de todo continente. Na última vez em que esteve aqui Galmesh curou a febre da filha do mercador e este, eternamente grato, ofereceu sua casa para abrigá-lo sempre que visitasse a cidade. Ulubai o recebeu alegremente e o avisou de que teria de se confrontar mais uma vez com o Templo para conversar com Daestiny, o tradutor.


No dia seguinte, Galmesh parte em sua missão.


- Onde posso encontrar o sábio Daestiny? - pergunta no templo principal de Ur ao sacerdote menor Tabek.
- Você não pode entrar sempre aqui com essa sua empáfia e sem obedecer os ritos completos para falar com os sacerdotes maiores, profeta estrangeiro.
- Diga ao mestre Tonsei que eu já me ajoelhei diante de todos os ritos nos templos menores e busquei o selo de todos os templos médios na primeira vez em que nos encontramos. Quando fiz isso, apenas por respeito, obtive permissão para falar com ele. E, apenas por respeito...
Eis que mestre Tonsei irrompe sala a dentro mexendo rapidamente com as mãos para que todos saiam.
Galmesh senta sobre uma das almofadas luxuosas que compõe a sala de trono do templo onde estão e observa sorrindo os guardas e sacerdotes saírem.
- Minhas sinceras saudações, Tonsei.
- Profeta insolente, como ousa?
- Construo clepsidras, lembra? Gozo do privilégio dos construtores.
- Herege!
- Alto lá!- o profeta interrompe o sacerdote em voz alta, levantando-se da almofada.
Tonsei emudece sob o olhar sério de Galmesh.
- Cumpri os seus ritos mais absurdos apenas para ter a chance de ter uma entrevista com um homem que se arroga o direito de ser chamado de Sua Santidade. Discuti com este homem que ao organizar a sua doutrina poderia fazê-lo sem esta "ritualística" desnecessária. Expliquei a esse mesmo homem no que podem crer os homens que respeitam as falas da alma e da natureza e que as palavras de ordem devem querer sempre o bem dos homens.
- Você não acredita em nossos valores.
- Eu me expliquei a você por acreditar no entendimento e não só na espada.
Tonsei estava visivelmente perturbado com a presença daquele estrangeiro que parecia não temer a morte que poderia decretar-lhe a qualquer momento. Não podia negar o profundo respeito conquistado ao vê-lo derrotar facilmente dois de seus guardas apenas para uma entrevista em sua última visita.
- E não violei o segredo de nossa conversa anterior.
- Eles estão nos ouvindo escondidos.
- Não me importa. Não tenho a intenção de fazer o povo enxergar a tirania que sua religião impôs às pessoas para que vocês vivessem no luxo. Quero apenas estar livre das obrigações impostas aos outros pelos seus costumes.
- A sua presença na cidade já é uma afronta a minha autoridade e ainda me pede para afrontar a crença?
- Seus guardas têm a minha palavra de que não irei abusar de meus direitos e não excederei em nada que possa ser considerado heresia.
- Que assim seja. Vá procurar Daestiny nas catacumbas. Os guardas o escoltarão.
- Assim seja. Que a luz se faça, Tonsei.

11 de mar. de 2010

A Maldição da Lojinha Holística ou Pierrot e o azarado

Eu acho que foi através dos jornais que cheguei ao escritório de Pierrot. Só não sei precisar se foi pela matéria na coluna de ciências ou nos classificados que trazem a pessoa amada em três dias, num quadro espremido estrategicamente entre as diferentes ofertas de materiais para escritório, massagens sueco-tailandesas e sexo fantástico e discreto com quase mulheres.

Você sabe como é, a memória anda de braço dado com a vergonha e nos esconde os momentos inglórios descaradamente. Logo, peço antecipadamente minhas desculpas, pois vou tentar descrever essa minha quase-memória como uma confissão, sem poupá-los dos detalhes ridículos que gostaria de esquecer.

Sempre fui um solitário cético e recluso. Viveria tranqüilamente indo de casa para o trabalho religiosamente sem buscar qualquer distração que me forçasse a sair de minha toca ou me afastasse de minhas coleções de livros.

Mas havia Lígia em minha vida.

Somente Lígia conseguia me arrastar para rua e me pôr em contato com outros seres humanos, contra minha vontade na maioria das vezes.

Ela era solar e mística, adorava dançar, conversar nos bares e perseguir uma resposta existencial. Eu era totalmente o oposto mas, hipnotizado pelo amor, fazia tudo que ela me pedia, tudo mesmo, sem reclamar ou demonstrar mau humor.

Mas ela sabia do que eu não gostava. E sempre arranjava uma forma de me criticar ou de expor minha "cárie cínica", minha total falta de fé.

23 de fev. de 2010

O retorno das coisas que se jogam no mar ou O Pierrot e a Ressaca


Leme pela manhã ainda estava vazia, mesmo com um sol escaldante...

Várias aves de rapina de vários nomes e tamanhos... Brancas, pretas e malhadas davam rasantes malabaristicos na beira da praia do leme, mas não ousavam, estranhamente, sequer pousar. Algumas em um mergulho kamikaze. As aves pareciam enjoadas e caiam na areia quando tentavam penetrar por entre um estranho escudo invisível que encobria o céu, castigando o mar com uma mancha negra, na verdade um dégradé de marrom escuro para um petróleo viscose que poderia se chamar de negro.

Um corpo a boiar no meio de uma praia vazia, o que todos esperavam inusitadamente por uma bóia, uma pedra ou até mesmo uma cachalote, ali não estava. Era um enorme, desfigurado e branco corpo. Gordo. E não era apenas pelo inchaço natural de um afogamento, era uma criatura gorda e desfigurada, de tal forma que não se podia determinar o sexo, já que um homem gordo tem seios tão grandes quanto os de uma mulher, mas os espaços que definiam o sexo do corpo estavam estranhamente mutilados – “Quem seria o corajoso peixe, se nem mesmo o urubu sobrevoa essa carniça?” – Pensou um dos bombeiros. O corpo era muito gordo, branco, fétido e assexuado. Uma contramão ou um sinal de pare era o que as pessoas esperavam ali, mas não há sinais de pare para na praia. Todos vão e se embrenham no mar mesmo. Dão aquela corrida para o salto milanesa na areia ou dão aquela corrida para água, mas até mesmo durante o percurso de uma carreira bem dada, há metros antes de se chegar a atrocidade e ao mergulho mau educado, o cheiro parava qualquer tipo de falta de educação de qualquer banhista abusado mas lá havia um corpo. Morto. Podre. Esperando uma fogueira, mas não havia fogueira na beira da praia e nem braços corajosos para carregar a inconveniente pedra que ali estava. A areia, o mal cheiro insuportável, a textura insuportável dos gases mal cheirosos que saiam dali, davam enjoou a qualquer bombeiro sequelado de várias e várias carniças... Muitos corajosos tentavam abraçar o corpo, mas ao menor contato com a pele, o corajoso se mijava todo e vomitava pra tudo quanto é lado. Aquela textura pegajosa, suada de um liquido negro, mesmo ao mais forte, só de sentir a pele morte e podre, já fazia qualquer um se esvair em vômito. Na praia, muitos maldiziam a sua existência e não compreendiam como “aquele Satanás enorme” havia ido parar na beira d’água espalhando a caatinga até Ipanema. Os homens que estavam a fazer Cooper na beira d’água saíram por uma estranha tangente.

O cheiro apodrecia até mesmo a onda, que ao se chocar com o corpo, levantava um spray cinza, espirrando em qualquer curioso que tentasse descobrir ou xeretar alguma coisa da natureza do corpo ou porco...

O dia esquentou. A tarde ardeu. E a noite apenas esfriou um pouco...

Um agrupamento de pessoas se formava em frente a uma banca, que mostrava as novidades que aconteciam sobre o estranho caso, que passava agora no Jornal Nacional.

“E agora, hotéis beira mar estavam sendo esvaziados em massa, daquilo que se chamou uma “catástrofe” sem medidas ou explicações. As pessoas e até mesmo os repórteres estavam sendo proibidos de tratar o assunto como “o corpo”, já que uma névoa já empesteava leme, Copacabana e Ipanema. Nevoa formada pelo “spray” que a onda fazia ao se chocar com “o objeto” que estava a beira d’ água... Um cordão de isolamento fechou toda a linha das calçadas na extensão de Copacabana até o Leblon, já que a língua negra formada pelo objeto se espalhara por toda orla...”

- Esse idiotas, não sabem que outras coisas irão voltar do mar – Resmungou uma mendiga sentada olhando o noticiário defronte a uma banca de jornal, ao lado estava um homem, não era apenas um homem, mas um curioso assistente e pesquisador, para ser mais específico o primeiro detetive de coisas sobrenaturais do Brasil, que recentemente abrira um escritório-prostibulo, com uma placa com o olho que tudo vê no meio da bandeira brasileira dizia que era do “discipulado Crowleyano”, que jogava cartas e previa o futuro. No jornal dizia que foi “um dos consultores a terminar com o mistério do triângulo das bermudas e que participou de exorcismos e dos rituais anti-poltergeistianos que limparam Amythville”. Seu escritório ficava no final da prado júnior. Um francês radicalizado brasileiro há pelo menos vinte anos atrás, era ele: Antoine d’u Pierrot, mago bunda-mole, simpatizante do candomblé e o menos importante no meio de toda aquela confusão, que apesar de tudo, ainda era um dos homens mais ingênuos a pisar na logística forense brasileira.

- Com licença senhora... O que a senhora disse? – Perguntou Pierrot a mendiga.

- Eu disse, seu gringo estúpido, que essas pessoas idiotas não sabem de merda nenhuma, eu já sábia há muito tempo que isso iria acontecer, só me disseram quando estaria perto, mas o dia ninguém nunca me precisou...

- Mas como a senhora sabia?

- Os urubus ora! Eles são os moradores mais antigos de Copacabana e o mais sábio deles, o líder, pra ser exata, me disse que o mar estava furioso, e um dia iria voltar com todas as coisas podres que mandaram para ele, até hoje...

Agora, realmente, eu comecei o meu dia, mas como acreditar em uma mendiga quando ela disse que foi um “urubu” que a contou que esse estranho fato aconteceria realmente? Acho que as coisas andam mais inacreditáveis que eu posso fazer ou pensar, então, eu a tomo pelo braço e pergunto onde eu posso encontrar esse tal líder dos urubus, antes que o mar se revolte e mande mais das suas coisas podres de volta... Ainda bem, estava cansado de ficar com a bunda no escritório o dia inteiro sem fazer nada...