A primeira coisa que a Santa fez foi encolher e esticar os dedos do pé. Séculos nesta mesma posição, era bom sentir os dedos dormentes formigarem. Daí ela piscou.
Piscou duas vezes e deixou a luz que penetrava na Catedral desenhar os contornos de toda aquela grandiosidade, e da multidão em sua pequenez individual – e em sua unidade semovente, como a barriga de um cachorro.
A igreja estava cheia, dia de Ramos, pessoas agitavam suas folhas de palma e entoavam hinos de louvor para lembrar a entrada do Senhor em Jerusalém.
- Mamãe, a Santa piscou.
- Shhhh!
- Sério, mãe. A Santa piscou. Duas vezes!
- Calabocamenino! Não te trago mais à igreja assim, e nem compro milho para você lá fora.
- Mas mãe...
_ Shhhh! – silenciou o petiz com um beliscão.
“Mas que ela piscou, piscou” – e ficou de olho na Santa.
Lentamente, a vida foi contaminando a pedra. O que era frialdade e estática, começava a se tornar vida e beleza. Cada centímetro de manto pétreo se amassava em tecido, e as mãos adquiriam a textura de pêssegos maduros e peitos pubescentes.
A Santa piscou mais uma vez, e sentiu a fraca brisa que corria pela nave da Catedral (neoclássica, fechada e cheia de ventiladores) em sua pele. Umedeceu ligeiramente os lábios, e olhou diretamente para o menino assustado. Entoou um “oi” mudo com os lábios, e sorriu.
- A SANTA TÁ VIVA!
O padre parou imediatamente de falar, e o silêncio tomou conta da nave, como se todos ali tivessem prendido a respiração naquele exato momento. Menos o menino.
- A Santa tá viva! Ela se mexeu, eu vi! – gritava histérico, apontando para a imagem, agora em cores mais humanas, apesar da pele pálida e cristalina.
Nesse momento, toda a audiência se voltou para a Santa, que sorria, com olhos bondosos.
Imediatamente, o burburinho recomeçou. “Valeimeminhamãedocéu” e “Milagre!” eram ouvidos entre os sussurros. Pessoas se prostravam de joelhos; alguns, mais idosos, choravam ao ver a face da Santa, que sorria bondosamente enquanto dava uma olhada panorâmica pela multidão.
O padre caíra também de joelhos, e entoava palavras desconexas, e deixava que as lagrimas lhe escorressem pelas faces copiosamente.
O barulho aumentava, e mesmo os fiéis mais céticos começavam a cair no chão. Alguém já começava a proclamar um milagre, viúvas uivavam, mocinhas quase arrebentavam seus rosários. De repente, a Santa ergueu seu braço direito, palma da mão pra baixo. O barulho lentamente começou a cessar; ainda se ouvia “Shhh, a Santa vai falar” e alguns “Glórias” ocasionais.
A Santa sorriu novamente, puxou o ar – enquanto todos voltavam novamente à apneia – e soltou o ar, como se testasse a garganta recém-formada em carne. Tentou novamente, engoliu em seco, e parou.
A multidão aflita, o sacerdote se adiantou – já recuperava seu papel de condutor de rebanhos – e verbalizou o desejo de toda aquela gente:
- Diga, minha Santa. Se nós somos dignos de uma revelação, diga agora o que queres a esses fiéis servos de Nosso Senhor.
A Santa então puxou o ar, e disse em um só hausto, em uma voz suave e cristalina, porém com potência suficiente para que todos a ouvissem:
(continua...)
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