17 de set. de 2010

Ariovaldo

ARIOVALDO, neguinho travesso, arisco, 11 anos, bom de bola, magro de fome. Os pais de Ariovaldo não tiveram estudo, coisa que com muito custo o menino teve numa escola municipal. Mas o que Ariovaldo queria na vida não era ser “dotô”, era ser mesmo jogador. Queria ser atacante do Botafogo que nem o Mané Garrincha, de tanto que lhe falava o seu vô Bernardino.
                            Ari, pai de Ariovaldo, não apostava no futebol que o moleque jogava na lama, nas ruas estreitas da favela, fazendo firulas e fazendo fila com os dribles desconcertantes em seus amiguinhos. Ari sonhava com Ariovaldo numa faculdade. A mãe de Ariovaldo, ainda ia mais longe, queria o garoto como engenheiro, para que ele pudesse construir para a família uma casa de verdade. A família do garoto não acreditava em sua habilidade como atacante, de correr e driblar. Mas o tempo passou, Ariovaldo cresceu e sua família não investiu em seu talento como jogador de futebol. Porém, na favela houve quem acreditasse no seu talento de correr e driblar: o tráfico.
                            Ariovaldo saiu da escola no momento em que descobriu um jeito de ganhar muito dinheiro num curto prazo de tempo, numa atividade que quase não exigia seu esforço. Sua mãe, apesar do conforto que Ariovaldo estava dando para sua família com o dinheiro sujo do tráfico, morreu de desgosto por ver o filho arriscando a vida e tirando outras.
                            A sua parte consistia em ser o atravessador para os traficas do asfalto. Ele levava a droga e vendia para os playboys, que revendiam mais caro para outros playboys que não tinham peito de subir o morro atrás do barato. Ariovaldo não era mais Ariovaldo, pela sua estatura e sua magreza de dar dó, era conhecido como Caveirinha.
                            O traficante Caveirinha já não driblava no futebol como fazia Ariovaldo, usava suas firulas e sua velocidade para escapar dos cana. Não dava mais passes para o gol, passava de 5 e de 10.
                            Quando o pipoco comia solto, corria como costumava correr para o ataque, chegava a ver o gol na sua frente para o pontapé que iria desencadear a alegria de milhões de torcedores. Pedalava para se esconder nas sombras quando apontava na esquina a veraneio vascaína. Pulava muros e telhados como nos treinos mais rígidos dos campeonatos. Caveirinha era respeitado tanto na defesa da boca quanto no ataque contra aqueles que invadiam a sua área, ele não tinha pena de entrar de carrinho e cometer faltas perigosíssimas. Tinha raça! Se garantia na porrada, quando pintava treta nos bailes funk da vida e sujava os punhos com o sangue dos irmãos treteiros. Riscava no ar seu punhal, presente de algum Exu do terreiro de mãe Pretinha, e chamava pra briga na capoeira com a ginga de um goleador.
                            Caveirinha foi ganhando nome e posição. Já estava visando um negócio de craque. Mas sua frustração veio quando viu que crack no Rio, não dava IBOPE. Tinha que expandir fronteiras, ganhar a confiança do testa-de-ferro da boca e dos gringos para negociar o crack pro exterior. Aí, sim, quando voltasse para o Brasil depois de se internacionalizar, teria mais crédito e entraria para a seleção do tráfico internacional.
                            Caveirinha abandonou a família e como já estava marcado, foi morar fora do estado. Em São Paulo mexeu com seqüestro, extorsão, armas pesadas, assassinatos e já era muito requisitado na lista do “Procura-se”.
                            Certo dia, o vô Bernardino foi parar num Pronto-Socorro lá no Rio de Janeiro. Estava muito mal, pelo que relatou um de seus primos. O seu avô era o único que em toda sua vida queria vê-lo defendendo a Estrela Solitária com toda a maestria e o talento com que havia nascido. Seu avô sonhava em vê-lo jogar e ser campeão pelo Botafogo!
                            Caveirinha vestiu a camisa do seu clube do coração e largou tudo para encontrar com o seu avô no Hospital no Rio de Janeiro. Mas não esperava ele, que o destino fosse lhe aprontar uma peça. Algum dedo-de-seta avisou pros cana que ele estava indo para o Rio. Foi só chegar na rodoviária que a Polícia, numa ação de contra-ataque, o pegou com a defesa vendida e marcou um golaço: prendeu Caveirinha, que sem reação, apático e abatido perdeu a partida. Enquanto dava o seu depoimento na delegacia, seu avô Bernardino morria sem nem sequer ter sido atendido por causa dos poucos médicos que haviam de plantão. Culpa da greve. Culpa do estado.
                            Condenado por muitos e muitos anos de prisão por tráfico de drogas, seqüestro, assassinato, assalto a mão armada, extorsão, formação de quadrilha, entre muitos outros títulos, não restou opção a Caveirinha: formou com outros detentos um time de futebol na penitenciária de segurança máxima.
                            No chão, com piso de cimento, duro e áspero, diferente da maciez da lama de sua rua em que jogava com seus amigos, ele fazia a festa. Levava a torcida da ala 07 ao delírio. Não tinha tempo ruim, com chuva ou com sol, o atacante fazia gol de falta, de bicicleta, de letra, driblava um, dois, três e levava o goleiro adversário para buscar a bola no fundo da rede.
Na final do primeiro campeonato da penitenciária estadual, todos pararam o que estavam fazendo para assistir ao jogo. Dos detentos até o diretor do presídio. Ala 07 versus ala 12. Foi uma goleada espetacular de 5 a 1 para o time da ala 07, onde o seu craque principal marcou 3 dos 5 gols.
Terminada a partida, ao erguer a humilde taça, feita pelos detentos que trabalhavam na oficina, sentiu descer as lágrimas dos olhos. A torcida agradecida gritava pelo seu nome:
__ Ariovaldo! Ariovaldo! Ariovaldo!...
Do livro de contos Angustiolândia, de Romulo Narducci.         

2 comentários:

  1. Grande Ariovaldo! Acabei de ler e ver a cena de centenas de jovens por ai. Legal essa coisa de escrever não por escrever, mas sim de escrever com uma crítica impregnada e involuntária.
    Legal, vou voltar aqui mais vezes, muito bom mesmo.

    www.romarioregis.blogspot.com

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  2. Rômulo, muito versátil essa ideia de fazer uma analogia do futebol com a vida do crime nos morros...interessante!
    Mais uma faceta sua, virar um contista.
    Boa!

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