18 de dez. de 2015

O último dia em que Juquinha foi ao catecismo

- Quer dizer então que eu não posso pecar nem em pensamento?

15 de ago. de 2015

Pirulitos

Duas crianças, nos seus oito anos muito provavelmente, chupavam despreocupados e felizes os seus pirulitos quando vêem passar a velhinha pitaqueira.

- O doce vai estragar seus dentes meninos. Joguem isso fora.

Malazarte prontamente tirou o pirulito da boca pra evitar confusão. Astrogildo ficou contrariado, ia ensaiar algum argumento mas, ao ver o amigo obedecendo a velha, resolveu imitá-lo e acabou jogando o doce no chão.

Assim que ela sumiu de vista Malazarte voltou a se deleitar com o pirulito habilmente escondido.

- Mas o doce vai estragar os seus dentes! Não ouviu o que a senhora disse? Reclama Astrogildo, inconformado com o doce perdido e com nítida inveja da astúcia do amigo.

- Meu pai diz que é só escovar bem os dentes e usar o fio dental depois de toda refeição que se pode comer de tudo

- Mas por quê você não disse isso a ela?

- Meu pai me disse também pra não discutir com estranhos, principalmente com idosos que não vão aprender nada novo.

- E seu pai também te ensinou a esconder as coisas? Não é justo isso...

- Maria-vai-com-as-outras, você achou que estava me copiando e o errado sou eu?

Malazarte sorri com a irritação do amigo e estica a mão lhe oferecendo um outro pirulito.

- Eu posso ensinar você a não jogar fora nem o seu tempo nem o que você gosta sem esquecer jamais o que seus pais lhe ensinaram.

24 de jul. de 2015

Lua em aquário

- Você atrai tudo que acontece com você.

 - Como assim?

 - É a lei da atração.

 - A lei da atração que conheço envolve uma razão entre cargas ou massas, uma constante e a razão inversa das distâncias.

 - Hahahaha. Você não toma jeito, Jorge.

 "Não tomo jeito mesmo", pensou consigo. "Adoro divinatórios mas não os ensandecidos que circulam nos meios. Por muito menos larguei a poesia e o I Ching."

 -"Tudo o que é emitido retorna à fonte. E essa fonte é Você."

 - Bela frase de facebook!

 - O que você vê na sua mente é o que vai ter na mão, cada pensamento seu é uma coisa - uma força. Você pode ter, fazer ou ser o que quiser.

 - Ué, não depende também dos outros a minha volta desejando coisas diferentes? Se todos desejassem um mundo melhor e sem fome ao invés de uma forma diferente de assistir pornô em casa talvez desse certo. Mas querer sacralizar o meu desejo individual, que sequer é original ou transcendente, e dizer que ele molda o universo não é forçar demais a barra?

 - Depende do foco no seu desejo, meu amigo. Basta ter convicção e método que você atrairá tudo aquilo que sua alma aspira ardentemente.

 Jorge olha pro astrólogo, confere que o sol está na quinta casa em oposição a mercúrio, guarda o mapa e sai sorrindo.

 - Pode pôr o meteoro na minha conta então.

28 de jun. de 2015

O percevejo





My body is a cage
That keeps me from dancing with the one I love
But my mind holds the key

Arcade Fire – My body is a cage
               

Tudo começa quando nos encaramos. O olhar, nada mais que um espelho. Embora sentisse um toque, não tinha certeza. À medida que prosseguia, um odor ácido vinha de minhas pernas. Fechei os olhos, mordi os lábios. Abri a boca e senti a força do gemido irrompendo de minha garganta.  Sim, era real. Um agente de fora, passeando por minha pele e me atingindo em pontos ocultos. Apertei com força as pálpebras e as reabri com coragem cega. Sem fôlego. Olhei para baixo e lá estava. Na minha cintura, gentilmente, subindo e desviando obstinado. Gritei:
- UM PERCEVEJO!!!
Tinha ido passar o fim de semana com amigos em Petrópolis. Ah, desculpa, nem me apresentei. Me chamo Patrícia, 20 e muitos anos e sou advogada. Passo minha vida em um oceano de papéis: de dia, nado em contratos, à noite, mergulho em romances eróticos. Nada dessas porcarias de “50 tons de cinza”, por favor, gente. Uma amiga minha de faculdade ia casar e convidou a velha turma do Direito para a casa de campo da família dela. Há tempos que não passava uns dias com amigos. Chegamos e o roteiro usual desses reencontros foi seguido à risca: bebida, memórias, bebida, comidinhas de frio, bebida, casais ficando e outros brigando, mais bebida. Até postei: Patrícia está num relacionamento sério com caipivodka de abacaxi.
Quando acordei pela manhã, li a postagem e notei que não era só a ressaca que me deprimia. Para publicar uma insinuação amorosa com uma bebida, é porque faltava algo. Como não tinha mais ninguém acordado (pelo menos fora dos quartos), fiz café, me servi uma caneca e fui caminhar pelo sítio. Admirava a beleza verde e úmida, embalada pelo friozinho, quando ele apareceu:
- O percevejo!!!
Não sei quantas vezes berrei, mas foram algumas. E altas. Comecei a bater no lugar, mas não o via. “Ele entrou nas minhas calças!!”, pensei. No desespero, tirei a roupa. Justamente quando já estava de calcinha, com as mãos na região das coxas e do quadril procurando o maldito bicho, meus amigos aparecem. Eles me olham como se fosse louca e perguntam o que houve. A que respondo, chorosa: “Um percevejo subiu nas minhas calças!” Procuramos, mas sem sucesso. “Deve ter fugido...” e percebo que a pessoa que fala isso se esforça para não emendar com “... quando você jogou suas calças na terra.” Minha amiga me abraça como se fosse uma vítima de trauma e sugere que tomemos um chá de camomila. Um piadista ao fundo comenta que deveria “pedir um tempo” para a caipivodka de abacaxi. Minha depressão sedimenta e penso que minha analista finalmente valerá o dinheiro que pago quando retornar. Após o chá, apago a mensagem na rede social. Não adianta, porque as fotos da noite mantiveram a vergonha alheia viva e saudável.
Em torno de uma semana depois da viagem, surgiram uns comichões estranhos.  Foi como se algo se movimentasse em mim. Não incomodava. Bem o contrário, às vezes! Mas que era esquisito, era. Fiz uma bateria de exames. Um denunciou a presença de um corpo estranho na cavidade abdominal. Um pequeno tumor não maligno, provavelmente. Como outras áreas não tinham sido afetadas, poderia ser extraído em uma operação. Marcamos para a data mais próxima; não tanto para mim, mas era o que tinha.
Na volta para casa, senti a cócega de novo, só que mais forte. Fui tomar um banho quente para relaxar. Debaixo da ducha, pulei ao notar um inchaço aparecer, se mover subcutâneo e sumir, como uma onda que quebra. Achei que tivesse ficado maluca de vez. Saí com tanta pressa que tropecei e bati a cabeça. Apaguei.
Acordei com uma massagem na nuca. Estava tão boa que nem quis abrir os olhos. Gemi relaxada e me deixei levar. Em seguida, o ombro esquerdo. Não sabia como, mas o massagista conseguia liberar os nós certos sem exercer pressão além da localizada no ponto. Quando aquele lado se encontrou completamente distendido, meu salvador foi trabalhar no outro.  Habilidoso, me senti segura como nunca em seu toque. Não era como em vários momentos em que uma pessoa faz massagem, mas parece uma tarefa impessoal, atrapalhada. Este sabia exatamente como manipular meu corpo com uma visão que ninguém mais tinha. De dentro. Achei que estivesse sonhando. Abri os olhos e tive certeza. Vi a mesma protuberância que me assustara no banho se mexendo em meu ombro direito. Uma bolha de pele me massageando internamente. Por um segundo apenas, pensei em gritar. Mas estava bom demais! Deixei...
O som de batidas fortes à porta me trouxe à realidade. O chão do banheiro, inundado. Pus uma toalha no corpo e fui atender. Era o porteiro. A vizinha de baixo reclamava que a água do meu apartamento vazava no teto dela. Enquanto limpava o excesso, senti um ligeiro e gostoso arrepio percorrer minha coluna. Larguei o esfregão de tão repentino e certeiro foi o prazer. Pude levar uma das mãos rapidamente à lombar e lá estava. Dentro de mim, tornando meu corpo sua morada e parque de diversões. Sim, era real.
Na véspera da cirurgia de remoção, não me internei. Liguei para cancelar. “Você sabe o que este corpo estranho pode fazer com você?”, alertou o médico. Respondi, com um sorriso nos lábios, que “não sabia” e desliguei. Emendei no pensamento: “... mas quero saber.”
Durante o dia, ficava quieto. Somente quando voltava do trabalho é que meu companheiro acordava. Tirava toda roupa para poder senti-lo na pele, tremendo minha carne. Encostava lânguida no sofá e lia em voz alta romances eróticos, com destaque para os trechos mais safadinhos. Ele correspondia, mordendo meus seios de leve. Mandava-lhe beijos, desejando que tivesse uma boca para beijar. Ser um amante inteiro.
Pela manhã, acordei com toques que vinham em onda abaixo do quadril, perto das coxas. Fundos e fortes. Cada vez mais. Sem pressa, mas velozes o bastante. De novo! Gritei seu nome! Um odor ácido invadiu o ar e me metamorfoseei. Inteira. Agora, éramos um híbrido, uma única doença. Nunca mais precisei ler um romance erótico na vida.

17 de jun. de 2015

A Bel





Você pode intuir o que é bom e belo, pode intuir o que é perfeito e harmonioso, o que é justo ou não. Só não poderá fazê-lo sob a influência do amor. O amor, caro amigo, nubla o juízo e a temperança, ignora o senso comum e nega a recompensa aos que realmente a merecem.
Inveja? É inofensiva e lisonjeira, coisa para disputas menores. A disputa pelo amor, essa subverte a lógica das alianças naturais e pode inverter a polaridade das intenções.
Sempre tive orgulho das minhas realizações. Fui o melhor aluno da classe, o atacante goleador, aquele que aprendeu inglês antes dos quatorze, ganhou bolsa para ir à Europa e sabia tocar piano.
Pergunte-me onde estava ela?
Dando atenção a Maribel e às suas futilidades. Nunca disse uma palavra elogiosa ao meu desempenho escolar, sentou na arquibancada para torcer pelo filho ou o viu conquistar seus prêmios. Acaso eu não fazia mais do que a minha obrigação? Sim, podia fazê-lo por mim, como você diz. Mas toda vitória era incompleta e troféus de nada valiam sem o seu reconhecimento. O maior troféu de minha mãe não era eu por mais que eu me esforçasse.
Cobiçava àquela atenção dada ao balé de minha irmã, a sua dedicação em melhorar as notas da menina que gazeava aula para brincar com a maquiagem roubada e bebia escondida os licores de papai. Cobiçava algo que era meu por direito e que me foi negado.
Maribel parecia não parecia perceber o quanto aquilo me desagradava. Procurava por mim para contar suas histórias absurdas de namoro e bagunça. Isso me deixava ainda mais irritado. Como lutar contra um inimigo que não o odeia? No fim das contas, percebi que ela não era a culpada pelo meu abandono sentimental.
O que fiz? Passei a odiar as duas e busquei a distância num outro país. Maduro, né? Não queria mais ver a condescendência materna com a vida desregrada que maninha levava.
E o que me perturba agora, doutor?
Encontrei, mamãe no funeral de Bel depois de quatro anos em que sequer nos falamos.
Ela me disse que se tivesse sido mais irmão ela não teria embarcado na dependência química. Aquilo foi uma porrada na cara. Refleti sobre o tempo que perdi mergulhado naquele sentimento escroto e edipiano. Antes tivesse me despido do orgulho e aberto meu coração. Realmente poderia ter convivido mais com Bel, não tê-la salvado, mas aproveitado o amor que ela teria me dado se eu não estivesse tão obcecado com a disputa.
Não sei se fiz certo em responder, doutor. Senti que me vingava.
O que respondi?
“A culpa foi sua, mamãe.”

11 de jun. de 2015

Duas pessoas discutindo uma possível conclusão a respeito da natureza da verdade



- Então, é isso?
- Metaforicamente.
- Metaforicamente?
- É.
- ...
- Que foi?
- Se é, metaforicamente...
- O quê?
- Então, não é.
- Então, não é.

17 de mai. de 2015

Xó xesus xalva





I wanna die just like Jesus Christ

I wanna die on a bed of spikes

I wanna die come see paradise

I wanna die just like Jesus Christ

“Revenrence” – Jesus and Mary Chain


Ninguém viu ou ouviu como aconteceu. Há versões, mas poucos fatos, exceto o resultado, exposto pra todo mundo. Um grupo de talvez umas dez a doze pessoas, homens e mulheres, a maioria jovem. Quem chamou a atenção para o que havia em frente ao bar foi uma velha conhecida. “Uma imoralidade contra nós! Um absurdo!”, lamentava.
Pastor Oscar se preparava para começar o culto da noite quando aquele anúncio despertou sua curiosidade. Saiu para ver o que era. De fato, era surpreendente, mas não de todo inesperado. Sua igreja, anteriormente uma loja de ferramentas convertida, ficava numa zona boêmia em um bairro de classe média. Como uma ilha, a reunião dos fiéis ocorria em uma área cercada por bares, centrais de perdição. O encontro era antecipado às quartas-feiras justamente para evitar o horário do futebol, quando o barulho dos frequentadores concorreria de igual com o canto para o Senhor.
Lembrou-se imediatamente do caso, pois o telejornal exibiu uma matéria dias atrás. O dono do bar ao lado e mais alguns teriam batido em gays. Dois homens teriam se beijado e os amigos deles gritado palavras chulas. O dono teria pedido para eles pararem, mas não foi atendido. Teve início a discussão que evoluiu para violência, com os gays jogando copos de vidro no bar e os seguranças se defendendo com pedaços de pau contra o grupo. Era madrugada, mas a confusão se expandiu e terminou com os homossexuais agredidos. Um deles estava com o rosto parecido com uma berinjela. Não era incomum, bicha apanha o tempo todo, mas uma das supostas vítimas era de família de renome. Então, houve repercussão, ameaças e o tal “beijaço”.
Pastor Oscar notou esta tendência. Toda vez que um homossexual afirmava ter sido vitimizado, eles marcavam o evento em frente ao local da suposta agressão e se beijavam. Para ele, tal ação era mais do inútil, era uma desculpa para exibir na cara das famílias o pecado como normalidade. Ele sabia o efeito que essas imagens poderiam surtir em mentes frágeis, perdidas num mundo cruel e sem fé. Decidiu que faria nada durante o “beijaço”. Exporia seu rebanho ao ridículo e não teria efeito algum. De qualquer forma, achou que seria bom montar guarda em frente à entrada da igreja para aliviar o choque dos fiéis ao presenciarem a cena ao lado de seu refúgio de adoração. Pediu para a senhora esperar dentro e saiu.
Olhou à sua esquerda. Em meio a mensagens ditas em um megafone, casais do mesmo sexo se beijavam de forma libidinosa. Encarou aquilo com um misto de piedade e repulsa. O homem que liderava o grupo largou o porta-voz e Pastor Oscar sentiu uma familiaridade. Em seguida, bateu a certeza. Era Alfredo, seu amigo de infância na favela em que ambos cresceram. O espanto foi tamanho que ignorou a chegada dos primeiros fiéis. Alfredo desceu da bancada em que estivera, encontrou outro homem e o beijou! Foi o “Pouca vergonha!” de um fiel que o acordou do transe.
Há quanto tempo não se viam?  Quase uma década. Cresceram juntos em uma comunidade periférica. Eram amigos e jogavam futebol na quadra quase toda noite. As famílias também eram amigas e foram umas das primeiras a entrar para a igreja evangélica que se instalara na favela. Logo, participavam de atividades com um grupo de jovens cristãos. Oscar era um dos favoritos do pastor, devido à sua habilidade em trazer novos adeptos. Fizera o mesmo com Alfredo. Eram adolescentes quando Oscar se tornou assistente do pastor, ajudando em tarefas como a coleta. Um dia, Alfredo o beijou. Assim, do nada. Oscar, após o repúdio inicial, pediu para ele e o amigo rezarem juntos para a salvação de suas almas. Oraram, mas não conseguiam se concentrar na mensagem. Seus corações não estavam cheios de amor, mas de outro sentimento. Algo forte. Oscar se apegou a trechos de sua bíblia, mas uma voz demoníaca insistia que não havia errado. Que era natural sentir desejo. E se entregar. Fugiu naquele dia. Passou a evitar o antigo amigo. Alfredo, em resposta, abandonou a igreja. Não comentaram o ocorrido com ninguém. Assim Oscar achara.
Um ano se passou. Apesar de orar com mais fervor, a lembrança não se afastou. Pelo contrário. Em mais de uma ocasião, tiveram intimidades além do natural. Era mais forte que eles. Quando isto ocorria, o procedimento usual de Oscar era se afastar de Alfredo e mergulhar em seus deveres na igreja. Até o inevitável momento em que a tentação o dominava, tornando sua carne uma gaiola para a elevação da alma. Isto se tornou quase uma rotina para ambos. Alfredo queria algo mais, dissera em mais de uma ocasião. Oscar tinha certeza de que os pecados de ambos poderiam ser expiados. Segurou-se a isso até o momento em flagrou Alfredo beijando um garoto. Outro garoto. Temendo pela perversão que o ex-amigo representava, se abriu com o pastor, sem relatar sua própria participação. Alfredo nada disse enquanto os fiéis o atacavam e a sua família na rua. Depois disso, ele sumiu. Oscar não mais o vira até agora. Não sabia se tinha sido reconhecido. Voltou para dentro da igreja antes que isto fosse possível.
Começou o culto com “Provérbios, 16”: Quando os ímpios se multiplicam, multiplicam-se as transgressões, mas os justos verão sua queda.” Apesar da comoção inicial, a reunião transcorreu sem incidentes. Quando acabou, não havia mais “beijaço”. Entretanto, alguns participantes ainda bebiam em outro bar nas redondezas. Os fiéis perguntaram a Pastor Oscar se nada fariam a respeito. Ele pediu para que “orassem por nossas almas.” Fechou a porta e, incapaz de encarar a rua, resolveu dormir na igreja.
Não demorou para ouvir vozes do lado de fora. Eram canções de louvor misturadas a palavras de ordem. Levantou-se, abriu a porta e, discretamente, observou a cena. Alguns fiéis em pé em frente a uma mesa, manifestantes em alerta e garçons com expressões preocupadas nos rostos. A senhora que fora a primeira a chegar recitava um trecho do Deuteronômio: “O homem mais delicado de Israel, o mais mimoso, olhará com maus olhos o seu irmão, a mulher que repousa no seu seio e o que lhe resta ainda de filhos...” O outro grupo respondeu com vulgaridades. “Eu chupo piroca do diabo, se quiser” e outros dizeres de baixo calão. Alfredo, que estava calado, subitamente gritou: “Pesada é a pedra, e a areia também; mas a ira do insensato é mais pesada do que elas ambas.”. Era o Provérbios, 27, 3. Oscar se relembrou que na primeira noite em que ele e Alfredo tiveram intimidades, ambos rezaram e leram em voz alta todo Provérbios. O mesmo que ele resolvera abrir o culto e que seu antigo amigo citara agora. Trancou a porta com força, voltou-se para dentro e rezou até cair exausto. Mais uma vez, buscava um sentimento em seu coração que não surgia. O que vinha era algo diferente, mais forte. Um misto de pena e repulsa. Só, desta vez, direcionada a si mesmo.
Acordou durante a madrugada. Escutou burburinho e sirenes de polícia. Era quase manhã. Mais uma vez, guiado por algo inevitável, saiu da igreja e foi em direção a um grupo de pessoas. Policiais e outras pessoas se reuniam em um quase círculo. Aproximou-se e viu Alfredo. Encarou diretamente os olhos sem vida. Mais acima, o sangue que saía de uma abertura na cabeça. Praticamente não respirava em frente ao cadáver de seu passado. Ouviu o policial falar que ninguém tinha visto “quem apagou a boneca”. Naquele instante, Oscar poderia jurar que a mancha vermelha no asfalto tinha o formato de um coração. Voltou-se e citou Eclesiástico, 8 , 7: “Não te alegres com uma morte: lembra-te de que todos morrerão.” Após ouvir uma grosseria e ser dispensado pelo oficial, pastor Oscar retornou a seu refúgio, se ajoelhou e chorou. E reencontrou o sentimento que tanto buscava. Orou e, na dor, fez as pazes com Deus e consigo mesmo.