I wanna die just like Jesus Christ
I wanna die on a bed of spikes
I wanna die come see paradise
I wanna die just like Jesus Christ
“Revenrence” – Jesus and Mary Chain
Ninguém viu ou ouviu como
aconteceu. Há versões, mas poucos fatos, exceto o resultado, exposto pra todo
mundo. Um grupo de talvez umas dez a doze pessoas, homens e mulheres, a maioria
jovem. Quem chamou a atenção para o que havia em frente ao bar foi uma velha
conhecida. “Uma imoralidade contra nós! Um absurdo!”, lamentava.
Pastor Oscar se
preparava para começar o culto da noite quando aquele anúncio despertou sua
curiosidade. Saiu para ver o que era. De fato, era surpreendente, mas não de
todo inesperado. Sua igreja, anteriormente uma loja de ferramentas convertida,
ficava numa zona boêmia em um bairro de classe média. Como uma ilha, a reunião
dos fiéis ocorria em uma área cercada por bares, centrais de perdição. O
encontro era antecipado às quartas-feiras justamente para evitar o horário do
futebol, quando o barulho dos frequentadores concorreria de igual com o canto
para o Senhor.
Lembrou-se
imediatamente do caso, pois o telejornal exibiu uma matéria dias atrás. O dono
do bar ao lado e mais alguns teriam batido em gays. Dois homens teriam se
beijado e os amigos deles gritado palavras chulas. O dono teria pedido para
eles pararem, mas não foi atendido. Teve início a discussão que evoluiu para
violência, com os gays jogando copos de vidro no bar e os seguranças se
defendendo com pedaços de pau contra o grupo. Era madrugada, mas a confusão se
expandiu e terminou com os homossexuais agredidos. Um deles estava com o rosto
parecido com uma berinjela. Não era incomum, bicha apanha o tempo todo, mas uma
das supostas vítimas era de família de renome. Então, houve repercussão,
ameaças e o tal “beijaço”.
Pastor Oscar notou esta
tendência. Toda vez que um homossexual afirmava ter sido vitimizado, eles
marcavam o evento em frente ao local da suposta agressão e se beijavam. Para
ele, tal ação era mais do inútil, era uma desculpa para exibir na cara das
famílias o pecado como normalidade. Ele sabia o efeito que essas imagens
poderiam surtir em mentes frágeis, perdidas num mundo cruel e sem fé. Decidiu
que faria nada durante o “beijaço”. Exporia seu rebanho ao ridículo e não teria
efeito algum. De qualquer forma, achou que seria bom montar guarda em frente à entrada
da igreja para aliviar o choque dos fiéis ao presenciarem a cena ao lado de seu
refúgio de adoração. Pediu para a senhora esperar dentro e saiu.
Olhou à sua esquerda.
Em meio a mensagens ditas em um megafone, casais do mesmo sexo se beijavam de
forma libidinosa. Encarou aquilo com um misto de piedade e repulsa. O homem que
liderava o grupo largou o porta-voz e Pastor Oscar sentiu uma familiaridade. Em
seguida, bateu a certeza. Era Alfredo, seu amigo de infância na favela em que
ambos cresceram. O espanto foi tamanho que ignorou a chegada dos primeiros
fiéis. Alfredo desceu da bancada em que estivera, encontrou outro homem e o
beijou! Foi o “Pouca vergonha!” de um fiel que o acordou do transe.
Há quanto tempo não se
viam? Quase uma década. Cresceram juntos
em uma comunidade periférica. Eram amigos e jogavam futebol na quadra quase
toda noite. As famílias também eram amigas e foram umas das primeiras a entrar
para a igreja evangélica que se instalara na favela. Logo, participavam de
atividades com um grupo de jovens cristãos. Oscar era um dos favoritos do
pastor, devido à sua habilidade em trazer novos adeptos. Fizera o mesmo com
Alfredo. Eram adolescentes quando Oscar se tornou assistente do pastor,
ajudando em tarefas como a coleta. Um dia, Alfredo o beijou. Assim, do nada.
Oscar, após o repúdio inicial, pediu para ele e o amigo rezarem juntos para a
salvação de suas almas. Oraram, mas não conseguiam se concentrar na mensagem.
Seus corações não estavam cheios de amor, mas de outro sentimento. Algo forte.
Oscar se apegou a trechos de sua bíblia, mas uma voz demoníaca insistia que não
havia errado. Que era natural sentir desejo. E se entregar. Fugiu naquele dia.
Passou a evitar o antigo amigo. Alfredo, em resposta, abandonou a igreja. Não
comentaram o ocorrido com ninguém. Assim Oscar achara.
Um ano se passou.
Apesar de orar com mais fervor, a lembrança não se afastou. Pelo contrário. Em
mais de uma ocasião, tiveram intimidades além do natural. Era mais forte que
eles. Quando isto ocorria, o procedimento usual de Oscar era se afastar de
Alfredo e mergulhar em seus deveres na igreja. Até o inevitável momento em que
a tentação o dominava, tornando sua carne uma gaiola para a elevação da alma.
Isto se tornou quase uma rotina para ambos. Alfredo queria algo mais, dissera
em mais de uma ocasião. Oscar tinha certeza de que os pecados de ambos poderiam
ser expiados. Segurou-se a isso até o momento em flagrou Alfredo beijando um
garoto. Outro garoto. Temendo pela perversão que o ex-amigo representava, se
abriu com o pastor, sem relatar sua própria participação. Alfredo nada disse
enquanto os fiéis o atacavam e a sua família na rua. Depois disso, ele sumiu.
Oscar não mais o vira até agora. Não sabia se tinha sido reconhecido. Voltou
para dentro da igreja antes que isto fosse possível.
Começou o culto com
“Provérbios, 16”: Quando os ímpios se multiplicam, multiplicam-se as
transgressões, mas os justos verão sua queda.” Apesar da comoção inicial, a reunião
transcorreu sem incidentes. Quando acabou, não havia mais “beijaço”.
Entretanto, alguns participantes ainda bebiam em outro bar nas redondezas. Os
fiéis perguntaram a Pastor Oscar se nada fariam a respeito. Ele pediu para que
“orassem por nossas almas.” Fechou a porta e, incapaz de encarar a rua,
resolveu dormir na igreja.
Não demorou para ouvir
vozes do lado de fora. Eram canções de louvor misturadas a palavras de ordem.
Levantou-se, abriu a porta e, discretamente, observou a cena. Alguns fiéis em pé
em frente a uma mesa, manifestantes em alerta e garçons com expressões
preocupadas nos rostos. A senhora que fora a primeira a chegar recitava um
trecho do Deuteronômio: “O homem mais delicado de Israel, o mais mimoso, olhará
com maus olhos o seu irmão, a mulher que repousa no seu seio e o que lhe resta
ainda de filhos...” O outro grupo respondeu com vulgaridades. “Eu chupo piroca
do diabo, se quiser” e outros dizeres de baixo calão. Alfredo, que estava
calado, subitamente gritou: “Pesada é a pedra, e a areia também; mas a ira do
insensato é mais pesada do que elas ambas.”. Era o Provérbios, 27, 3. Oscar se
relembrou que na primeira noite em que ele e Alfredo tiveram intimidades, ambos
rezaram e leram em voz alta todo Provérbios. O mesmo que ele resolvera abrir o
culto e que seu antigo amigo citara agora. Trancou a porta com força, voltou-se
para dentro e rezou até cair exausto. Mais uma vez, buscava um sentimento em
seu coração que não surgia. O que vinha era algo diferente, mais forte. Um
misto de pena e repulsa. Só, desta vez, direcionada a si mesmo.
Acordou durante a
madrugada. Escutou burburinho e sirenes de polícia. Era quase manhã. Mais uma
vez, guiado por algo inevitável, saiu da igreja e foi em direção a um grupo de
pessoas. Policiais e outras pessoas se reuniam em um quase círculo. Aproximou-se
e viu Alfredo. Encarou diretamente os olhos sem vida. Mais acima, o sangue que
saía de uma abertura na cabeça. Praticamente não respirava em frente ao cadáver
de seu passado. Ouviu o policial falar que ninguém tinha visto “quem apagou a
boneca”. Naquele instante, Oscar poderia jurar que a mancha vermelha no asfalto
tinha o formato de um coração. Voltou-se e citou Eclesiástico, 8 , 7: “Não te
alegres com uma morte: lembra-te de que todos morrerão.” Após ouvir uma
grosseria e ser dispensado pelo oficial, pastor Oscar retornou a seu refúgio,
se ajoelhou e chorou. E reencontrou o sentimento que tanto buscava. Orou e, na
dor, fez as pazes com Deus e consigo mesmo.
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