My body is a cage
That keeps me from dancing with the one I love
But my mind holds the key
Arcade Fire – My body is a
cage
Tudo
começa quando nos encaramos. O olhar, nada mais que um espelho. Embora sentisse
um toque, não tinha certeza. À medida que prosseguia, um odor ácido vinha de
minhas pernas. Fechei os olhos, mordi os lábios. Abri a boca e senti a força do
gemido irrompendo de minha garganta. Sim, era real. Um agente de fora, passeando
por minha pele e me atingindo em pontos ocultos. Apertei com força as pálpebras
e as reabri com coragem cega. Sem fôlego. Olhei para baixo e lá estava. Na
minha cintura, gentilmente, subindo e desviando obstinado. Gritei:
-
UM PERCEVEJO!!!
Tinha
ido passar o fim de semana com amigos em Petrópolis. Ah, desculpa, nem me
apresentei. Me chamo Patrícia, 20 e muitos anos e sou advogada. Passo minha
vida em um oceano de papéis: de dia, nado em contratos, à noite, mergulho em
romances eróticos. Nada dessas porcarias de “50 tons de cinza”, por favor,
gente. Uma amiga minha de faculdade ia casar e convidou a velha turma do
Direito para a casa de campo da família dela. Há tempos que não passava uns dias
com amigos. Chegamos e o roteiro usual desses reencontros foi seguido à risca:
bebida, memórias, bebida, comidinhas de frio, bebida, casais ficando e outros
brigando, mais bebida. Até postei: Patrícia está num relacionamento sério com
caipivodka de abacaxi.
Quando
acordei pela manhã, li a postagem e notei que não era só a ressaca que me
deprimia. Para publicar uma insinuação amorosa com uma bebida, é porque faltava
algo. Como não tinha mais ninguém acordado (pelo menos fora dos quartos), fiz
café, me servi uma caneca e fui caminhar pelo sítio. Admirava a beleza verde e
úmida, embalada pelo friozinho, quando ele apareceu:
-
O percevejo!!!
Não
sei quantas vezes berrei, mas foram algumas. E altas. Comecei a bater no lugar,
mas não o via. “Ele entrou nas minhas calças!!”, pensei. No desespero, tirei a
roupa. Justamente quando já estava de calcinha, com as mãos na região das coxas
e do quadril procurando o maldito bicho, meus amigos aparecem. Eles me olham
como se fosse louca e perguntam o que houve. A que respondo, chorosa: “Um
percevejo subiu nas minhas calças!” Procuramos, mas sem sucesso. “Deve ter
fugido...” e percebo que a pessoa que fala isso se esforça para não emendar com
“... quando você jogou suas calças na terra.” Minha amiga me abraça como se
fosse uma vítima de trauma e sugere que tomemos um chá de camomila. Um piadista
ao fundo comenta que deveria “pedir um tempo” para a caipivodka de abacaxi.
Minha depressão sedimenta e penso que minha analista finalmente valerá o
dinheiro que pago quando retornar. Após o chá, apago a mensagem na rede social.
Não adianta, porque as fotos da noite mantiveram a vergonha alheia viva e
saudável.
Em
torno de uma semana depois da viagem, surgiram uns comichões estranhos. Foi como se algo se movimentasse em mim. Não
incomodava. Bem o contrário, às vezes! Mas que era esquisito, era. Fiz uma
bateria de exames. Um denunciou a presença de um corpo estranho na cavidade
abdominal. Um pequeno tumor não maligno, provavelmente. Como outras áreas não
tinham sido afetadas, poderia ser extraído em uma operação. Marcamos para a
data mais próxima; não tanto para mim, mas era o que tinha.
Na
volta para casa, senti a cócega de novo, só que mais forte. Fui tomar um banho
quente para relaxar. Debaixo da ducha, pulei ao notar um inchaço aparecer, se
mover subcutâneo e sumir, como uma onda que quebra. Achei que tivesse ficado
maluca de vez. Saí com tanta pressa que tropecei e bati a cabeça. Apaguei.
Acordei
com uma massagem na nuca. Estava tão boa que nem quis abrir os olhos. Gemi relaxada
e me deixei levar. Em seguida, o ombro esquerdo. Não sabia como, mas o
massagista conseguia liberar os nós certos sem exercer pressão além da
localizada no ponto. Quando aquele lado se encontrou completamente distendido,
meu salvador foi trabalhar no outro.
Habilidoso, me senti segura como nunca em seu toque. Não era como em
vários momentos em que uma pessoa faz massagem, mas parece uma tarefa
impessoal, atrapalhada. Este sabia exatamente como manipular meu corpo com uma
visão que ninguém mais tinha. De dentro. Achei que estivesse sonhando. Abri os
olhos e tive certeza. Vi a mesma protuberância que me assustara no banho se
mexendo em meu ombro direito. Uma bolha de pele me massageando internamente. Por
um segundo apenas, pensei em gritar. Mas estava bom demais! Deixei...
O
som de batidas fortes à porta me trouxe à realidade. O chão do banheiro,
inundado. Pus uma toalha no corpo e fui atender. Era o porteiro. A vizinha de
baixo reclamava que a água do meu apartamento vazava no teto dela. Enquanto
limpava o excesso, senti um ligeiro e gostoso arrepio percorrer minha coluna.
Larguei o esfregão de tão repentino e certeiro foi o prazer. Pude levar uma das
mãos rapidamente à lombar e lá estava. Dentro de mim, tornando meu corpo sua
morada e parque de diversões. Sim, era real.
Na
véspera da cirurgia de remoção, não me internei. Liguei para cancelar. “Você
sabe o que este corpo estranho pode fazer com você?”, alertou o médico.
Respondi, com um sorriso nos lábios, que “não sabia” e desliguei. Emendei no
pensamento: “... mas quero saber.”
Durante
o dia, ficava quieto. Somente quando voltava do trabalho é que meu companheiro
acordava. Tirava toda roupa para poder senti-lo na pele, tremendo minha carne.
Encostava lânguida no sofá e lia em voz alta romances eróticos, com destaque
para os trechos mais safadinhos. Ele correspondia, mordendo meus seios de leve.
Mandava-lhe beijos, desejando que tivesse uma boca para beijar. Ser um amante
inteiro.
Pela
manhã, acordei com toques que vinham em onda abaixo do quadril, perto das
coxas. Fundos e fortes. Cada vez mais. Sem pressa, mas velozes o bastante. De
novo! Gritei seu nome! Um odor ácido invadiu o ar e me metamorfoseei. Inteira.
Agora, éramos um híbrido, uma única doença. Nunca mais precisei ler um romance
erótico na vida.
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