28 de jun. de 2015

O percevejo





My body is a cage
That keeps me from dancing with the one I love
But my mind holds the key

Arcade Fire – My body is a cage
               

Tudo começa quando nos encaramos. O olhar, nada mais que um espelho. Embora sentisse um toque, não tinha certeza. À medida que prosseguia, um odor ácido vinha de minhas pernas. Fechei os olhos, mordi os lábios. Abri a boca e senti a força do gemido irrompendo de minha garganta.  Sim, era real. Um agente de fora, passeando por minha pele e me atingindo em pontos ocultos. Apertei com força as pálpebras e as reabri com coragem cega. Sem fôlego. Olhei para baixo e lá estava. Na minha cintura, gentilmente, subindo e desviando obstinado. Gritei:
- UM PERCEVEJO!!!
Tinha ido passar o fim de semana com amigos em Petrópolis. Ah, desculpa, nem me apresentei. Me chamo Patrícia, 20 e muitos anos e sou advogada. Passo minha vida em um oceano de papéis: de dia, nado em contratos, à noite, mergulho em romances eróticos. Nada dessas porcarias de “50 tons de cinza”, por favor, gente. Uma amiga minha de faculdade ia casar e convidou a velha turma do Direito para a casa de campo da família dela. Há tempos que não passava uns dias com amigos. Chegamos e o roteiro usual desses reencontros foi seguido à risca: bebida, memórias, bebida, comidinhas de frio, bebida, casais ficando e outros brigando, mais bebida. Até postei: Patrícia está num relacionamento sério com caipivodka de abacaxi.
Quando acordei pela manhã, li a postagem e notei que não era só a ressaca que me deprimia. Para publicar uma insinuação amorosa com uma bebida, é porque faltava algo. Como não tinha mais ninguém acordado (pelo menos fora dos quartos), fiz café, me servi uma caneca e fui caminhar pelo sítio. Admirava a beleza verde e úmida, embalada pelo friozinho, quando ele apareceu:
- O percevejo!!!
Não sei quantas vezes berrei, mas foram algumas. E altas. Comecei a bater no lugar, mas não o via. “Ele entrou nas minhas calças!!”, pensei. No desespero, tirei a roupa. Justamente quando já estava de calcinha, com as mãos na região das coxas e do quadril procurando o maldito bicho, meus amigos aparecem. Eles me olham como se fosse louca e perguntam o que houve. A que respondo, chorosa: “Um percevejo subiu nas minhas calças!” Procuramos, mas sem sucesso. “Deve ter fugido...” e percebo que a pessoa que fala isso se esforça para não emendar com “... quando você jogou suas calças na terra.” Minha amiga me abraça como se fosse uma vítima de trauma e sugere que tomemos um chá de camomila. Um piadista ao fundo comenta que deveria “pedir um tempo” para a caipivodka de abacaxi. Minha depressão sedimenta e penso que minha analista finalmente valerá o dinheiro que pago quando retornar. Após o chá, apago a mensagem na rede social. Não adianta, porque as fotos da noite mantiveram a vergonha alheia viva e saudável.
Em torno de uma semana depois da viagem, surgiram uns comichões estranhos.  Foi como se algo se movimentasse em mim. Não incomodava. Bem o contrário, às vezes! Mas que era esquisito, era. Fiz uma bateria de exames. Um denunciou a presença de um corpo estranho na cavidade abdominal. Um pequeno tumor não maligno, provavelmente. Como outras áreas não tinham sido afetadas, poderia ser extraído em uma operação. Marcamos para a data mais próxima; não tanto para mim, mas era o que tinha.
Na volta para casa, senti a cócega de novo, só que mais forte. Fui tomar um banho quente para relaxar. Debaixo da ducha, pulei ao notar um inchaço aparecer, se mover subcutâneo e sumir, como uma onda que quebra. Achei que tivesse ficado maluca de vez. Saí com tanta pressa que tropecei e bati a cabeça. Apaguei.
Acordei com uma massagem na nuca. Estava tão boa que nem quis abrir os olhos. Gemi relaxada e me deixei levar. Em seguida, o ombro esquerdo. Não sabia como, mas o massagista conseguia liberar os nós certos sem exercer pressão além da localizada no ponto. Quando aquele lado se encontrou completamente distendido, meu salvador foi trabalhar no outro.  Habilidoso, me senti segura como nunca em seu toque. Não era como em vários momentos em que uma pessoa faz massagem, mas parece uma tarefa impessoal, atrapalhada. Este sabia exatamente como manipular meu corpo com uma visão que ninguém mais tinha. De dentro. Achei que estivesse sonhando. Abri os olhos e tive certeza. Vi a mesma protuberância que me assustara no banho se mexendo em meu ombro direito. Uma bolha de pele me massageando internamente. Por um segundo apenas, pensei em gritar. Mas estava bom demais! Deixei...
O som de batidas fortes à porta me trouxe à realidade. O chão do banheiro, inundado. Pus uma toalha no corpo e fui atender. Era o porteiro. A vizinha de baixo reclamava que a água do meu apartamento vazava no teto dela. Enquanto limpava o excesso, senti um ligeiro e gostoso arrepio percorrer minha coluna. Larguei o esfregão de tão repentino e certeiro foi o prazer. Pude levar uma das mãos rapidamente à lombar e lá estava. Dentro de mim, tornando meu corpo sua morada e parque de diversões. Sim, era real.
Na véspera da cirurgia de remoção, não me internei. Liguei para cancelar. “Você sabe o que este corpo estranho pode fazer com você?”, alertou o médico. Respondi, com um sorriso nos lábios, que “não sabia” e desliguei. Emendei no pensamento: “... mas quero saber.”
Durante o dia, ficava quieto. Somente quando voltava do trabalho é que meu companheiro acordava. Tirava toda roupa para poder senti-lo na pele, tremendo minha carne. Encostava lânguida no sofá e lia em voz alta romances eróticos, com destaque para os trechos mais safadinhos. Ele correspondia, mordendo meus seios de leve. Mandava-lhe beijos, desejando que tivesse uma boca para beijar. Ser um amante inteiro.
Pela manhã, acordei com toques que vinham em onda abaixo do quadril, perto das coxas. Fundos e fortes. Cada vez mais. Sem pressa, mas velozes o bastante. De novo! Gritei seu nome! Um odor ácido invadiu o ar e me metamorfoseei. Inteira. Agora, éramos um híbrido, uma única doença. Nunca mais precisei ler um romance erótico na vida.

17 de jun. de 2015

A Bel





Você pode intuir o que é bom e belo, pode intuir o que é perfeito e harmonioso, o que é justo ou não. Só não poderá fazê-lo sob a influência do amor. O amor, caro amigo, nubla o juízo e a temperança, ignora o senso comum e nega a recompensa aos que realmente a merecem.
Inveja? É inofensiva e lisonjeira, coisa para disputas menores. A disputa pelo amor, essa subverte a lógica das alianças naturais e pode inverter a polaridade das intenções.
Sempre tive orgulho das minhas realizações. Fui o melhor aluno da classe, o atacante goleador, aquele que aprendeu inglês antes dos quatorze, ganhou bolsa para ir à Europa e sabia tocar piano.
Pergunte-me onde estava ela?
Dando atenção a Maribel e às suas futilidades. Nunca disse uma palavra elogiosa ao meu desempenho escolar, sentou na arquibancada para torcer pelo filho ou o viu conquistar seus prêmios. Acaso eu não fazia mais do que a minha obrigação? Sim, podia fazê-lo por mim, como você diz. Mas toda vitória era incompleta e troféus de nada valiam sem o seu reconhecimento. O maior troféu de minha mãe não era eu por mais que eu me esforçasse.
Cobiçava àquela atenção dada ao balé de minha irmã, a sua dedicação em melhorar as notas da menina que gazeava aula para brincar com a maquiagem roubada e bebia escondida os licores de papai. Cobiçava algo que era meu por direito e que me foi negado.
Maribel parecia não parecia perceber o quanto aquilo me desagradava. Procurava por mim para contar suas histórias absurdas de namoro e bagunça. Isso me deixava ainda mais irritado. Como lutar contra um inimigo que não o odeia? No fim das contas, percebi que ela não era a culpada pelo meu abandono sentimental.
O que fiz? Passei a odiar as duas e busquei a distância num outro país. Maduro, né? Não queria mais ver a condescendência materna com a vida desregrada que maninha levava.
E o que me perturba agora, doutor?
Encontrei, mamãe no funeral de Bel depois de quatro anos em que sequer nos falamos.
Ela me disse que se tivesse sido mais irmão ela não teria embarcado na dependência química. Aquilo foi uma porrada na cara. Refleti sobre o tempo que perdi mergulhado naquele sentimento escroto e edipiano. Antes tivesse me despido do orgulho e aberto meu coração. Realmente poderia ter convivido mais com Bel, não tê-la salvado, mas aproveitado o amor que ela teria me dado se eu não estivesse tão obcecado com a disputa.
Não sei se fiz certo em responder, doutor. Senti que me vingava.
O que respondi?
“A culpa foi sua, mamãe.”

11 de jun. de 2015

Duas pessoas discutindo uma possível conclusão a respeito da natureza da verdade



- Então, é isso?
- Metaforicamente.
- Metaforicamente?
- É.
- ...
- Que foi?
- Se é, metaforicamente...
- O quê?
- Então, não é.
- Então, não é.