Quando
atravessar?... Este calor... Não aguento... Quanto tempo...?
Jeanne morava em Copacabana por metade de sua vida.
Nascera e fora criada na França, de onde veio com o marido. Vinham com a
promessa de fortuna nos trópicos, tanto financeira quanto sentimental.
Lembrando-se agora, a ingenuidade que envolvia a viagem do casal era
equivalente ao tédio que nutriam pelo outro e por suas vidas pregressas em
geral. Um tédio que aos poucos se transformara em desprezo, pois ambos eram para
o outro o reflexo de seu fracasso existencial. Mas eram também ingênuas,
crianças adultas burguesas, para que o chamado a uma aventura do outro lado do
mundo era irresistível. Seria, quem sabe, a redenção de procuravam como casal e
individualmente.
Estabeleceram-se em um apartamento espaçoso em
Copacabana e trouxeram uma mudança embalada em boas intenções. Se os objetos
chegaram intactos a seu destino, o resto ficara preso em alguma alfândega dos
sentimentos. O distanciamento e indiferença entre marido e esposa vieram junto,
escondidos entre as cobertas e disfarçados inicialmente na burocracia e
arrumação do novo lar.
Esses
jovens imundos, com estas garrafas imundas na boca, escondidas dentro destas
camisas imundas. Tão pequenos e sujos. Todo mundo vê, mas finge que não. Eles
fingem que não querem ser vistos, mas se exibem com esta droga que tomam como
mamadeira. Pés descalços nesse asfalto quente feito o inferno, como aguentam?
Os pés são tão grossos, a sujeira faz uma camada na sola, como um chinelo de barro.
Eles se drogam e não se importam com os pés que queimam. Cada queimadura
fortalece os pés. Quanto maior a dor, maior o entorpecimento. E essas criaturas
imundas se tornam mais resistentes e se multiplicam, mais drogadas e imundas. E
aí, quando não vemos, nos atacam.
Foi no auge do alcoolismo de Jeanne que o marido se
matou. Ligou o gás e enfiou sua cabeça no forno como um guisado. O primeiro
pensamento que teve foi de alívio por não ter acendido um cigarro no
apartamento antes que o corpo fosse descoberto. O segundo foi de terror: como
pagaria as contas? Ela era uma dona de casa, não dominava o idioma, nem tinha
feito amizades no país. Após enterrar o marido, procurou a embaixada,
determinada a retornar e assumir seu fracasso. No lugar, apenas perguntou se
eles poderiam lhe oferecer trabalho. Embora não tivesse criado laços com a
terra, Jeanne sabia que estava sozinha, inquestionavelmente sozinha. Não
importava mais. Optou por permanecer entre Sartre e Cartola se tornar um
símbolo de que nossas experiências não nos moldam, mas nos moem.
É
incrível o movimento por aqui. Nada para, mas nada fica. Um ônibus passa, dois
ônibus passam. Depois, um ou três carros. Depois, mais dois ônibus. E mais
carros. Todos diferentes, vermelhos, brancos, laranjas, mas todos iguais. Uma
série de manchas barulhentas em alta velocidade, trotando indiferentes e
grosseiras para lugar nenhum. Debaixo de céu que frita os sentidos. Quanto
tempo?... Preciso atravessar...
Com o tempo, Jeanne se aposentou e se tornou
professora de francês particular. Com a ajuda de conhecidos da embaixada,
conseguiu um volume saudável de alunos e ordenado. Não gostava, nem desgostava
de seu trabalho. Datilografar documentos em uma recepção ou corrigir redações,
como tudo, eram apenas variações desinteressantes da mesma nota. Acordar,
comer, trabalhar, comer, dormir. Por 35 anos, a exata idade com que
desembarcara em busca do novo, encarava o mesmo reflexo. Sem acumular
experiências ou tido uma epifania, resignou-se em envelhecer e esperar o dia em
que não precisaria mais retornar à rotina.
Quanto
calor... Aqueles jovens imundos drogados estão perto, nunca saíram de perto de
mim... Minha vida toda... Quanto tempo? Pare de pensar! Você pensa o tempo todo
e não faz nada! Faça. Atravesse.
Com a mente limpa e num estado de paz que sequer se
recordava se havia tido, Jeanne atravessou a avenida com o sinal aberto. Por
toda a vida, sempre andou na faixa, resignada. Esperava uma luz liberar para
que pudesse seguir para longe da imundice e entorpecimento. Agora, decidiu que
não tinha mais tempo. Após se deixar levar pelo impacto do ônibus, ela
atravessou.